2005/04/02

Quando o Estado Incentiva a Corrupção!

Há dias, nos órgãos de comunicação social, numa notícia que quase passou despercebida, dizia-se que: “os funcionários da administração fiscal vão receber prémios, devido à sua eficiência na recuperação das dívidas, durante o ano passado”.
Também os polícias têm direito a uma “comissão”, de cada vez que passam uma multa.
A meu ver, isto é uma forma de o próprio Estado “legitimar” o mercenarismo e a corrupção (que, na maioria dos casos, se transforma em extorsão).
É por isso que as alterações ao código da estrada são encaradas como mais uma forma de legitimar a extorsão de mais, e mais avultadas, multas. Isto tem um efeito negativo na sinistralidade rodoviária, porque agrava um dos factores: as preocupações e problemas dos cidadãos, que não é o factor menos importante.

Se o funcionário (ou o polícia) deve ser “incentivado” a cumprir a sua obrigação, a actuar, recebendo uma compensação monetária (mormente em função dos valores que cobra), o que é que o impede de (qual é a barreira conceptual?) achar que pode aumentar um pouco mais os seus proventos, dividindo o “lucro” com o cidadão visado? Até porque, assim, sempre é um pouco menos odiado pelo cidadão, o que é bastante mais confortável, do ponto de vista psicológico.
Além disso, este facto retira credibilidade e isenção à actuação destas pessoas, que são olhadas como caçadores e incentivadores de multas e coimas, de forma, muitas vezes, arbitrária, para benefício próprio.
Na verdade, uma grande parte das multas policiais obedecem, nitidamente, a este critério (a esta necessidade?), provocando a revolta e indignação dos cidadãos. O mesmo acontece, frequentemente, com os “critérios” dos profissionais do fisco. Estes prémios nem sequer dão garantia de reduzir a tão conhecida e falada corrupção entre estes funcionários, pelo contrário.
Por outro lado, se estes podem beneficiar, economicamente, com o desempenho das suas funções, o que é que impede outros de fazerem o mesmo, (extorquindo directamente aos cidadãos), se estiverem em lugares que não lhes conferem direito a “prémios ou comissões”, quando até “têm a faca e o queijo na mão”?
E os funcionários que não podem fazer uma nem outra coisa? Como é que se lhes pode exigir que cumpram, bem, as suas funções se não recebem nenhum incentivo (e a sua “disponibilidade” até pode estar limitada por vencimentos ridículos)?
Acresce que, se, entre os funcionários públicos, se admitem este tipo de lógicas, em que é “legítimo” cada um se apropriar duma parte do que “lhe passa pelas mãos” não nos podemos admirar se o cidadão fizer o mesmo, no que se refere aos impostos que devia pagar. Pois se uma parte é para “apropriação” particular, porquê particular dos outros e não particular dele? A meu ver, esta “lógica” tem um efeito pernicioso, do estilo “bola de neve”, absolutamente demolidor para o próprio estado.

É claro que tudo começa com os vencimentos escandalosos dos Assessores e Gestores, mais dos “Peritos” e Consultores, etc. As comissões sobre as multas e os prémios para os funcionários do fisco são, apenas, o prolongamento desta mesma “lógica” de sobrevaloração da “iniciativa privada” de apropriação, particular, dos recursos públicos. É apenas uma forma de “calar” o maior número possível de pessoas, usando o dinheiro do estado para lhes subornar a consciência.
Não é de admirar, quando a própria magistrada Maria José Morgado, conhecida como imparcial, neste tipo de matérias, chegou a propor que se oferecessem benefícios aos empresários que denunciassem os casos de corrupção, no fisco. É exactamente a mesma lógica. O que chateia é que isto é uma questão muito simples de resolver… mas que continua (e, pelos vistos, continuará) sem solução...
Todos reconhecem que não é possível alterar este estado de coisas (o enorme peso da fuga ao fisco), sem a colaboração dos cidadãos. Nem mesmo se existisse um fiscal por cada contribuinte seria possível, isso eu posso garantir. Mas este tipo de prémios e comissões fazem o efeito contrário. Até porque, no que se refere à detecção e eventual correcção, dos casos de fuga ao fisco, eles “passam por debaixo dos narizes” de muita outra gente que não apenas de funcionários do fisco.

Obviamente que não podemos desprezar a enorme importância que tem, para a mobilização dos cidadãos, a forma como cada um é tratado pelas instituições do Estado, o respeito que o estado tem por eles (cidadãos), a forma como são resolvidos os seus problemas, a eficiência e honestidade das decisões que lhes dizem respeito.
Numa palavra: a utilidade social que resulta do pagamento dos impostos e da forma como é gerido e usado o respectivo dinheiro. Isso pressupõe um combate sem tréguas a qualquer forma de corrupção e o respeito por todos e cada um dos cidadãos. O cidadão que paga impostos também se sente molestado pelas patifarias que vê praticar sobre os restantes. Falo, nomeadamente, do funcionamento da justiça, mas não só.
Este é um dos problemas que só pode ser resolvido com mais democracia, mais rigor e mais dignidade na actuação dos organismos públicos; nunca subornando os respectivos funcionários. Só assim, em vista da dignidade dos objectivos e da idoneidade das instituições, em vista da necessidade premente de resolver os problemas comuns e melhorar, para todos, as nossas condições de vida e a nossa situação económica, é que se podem mobilizar todos, funcionários e cidadãos, para resolver este tipo de problemas.
Não se pode fazer isso pedindo a uns empenho em troca de nada (de vencimentos ridículos) e pagando bem demais a outros para nada fazerem. Há que cuidar, seriamente, da melhoria dos vencimentos de todos, em vez de beneficiar, descriminatoriamente, alguns.
Pelo menos na função pública e no desempenho de cargos públicos, justifica-se haver um limite superior de vencimentos, dependente do valor do vencimento médio e do vencimento mínimo praticado em cada organismo (e no total do aparelho do estado).

É fácil resolver este problema (da fuga ao fisco), mas não é por este caminho. Deve-se actuar com rigor, mas privilegiar a mobilização e adesão dos cidadãos, em vez de seguir pelas vias persecutórias, de cujas serão, sempre, protegidos os “amigos”, factor que funciona como incentivo a que outros “tentem a sua sorte”.
Não sei o que é que o meu amigo Roncinante pensará deste post, se o ler, mas eu vou sempre dizer o que tem de ser dito, doa a quem doer. Pensando melhor, não haverá razão para “doer tanto assim”.